Génova 1960
«Os políticos mentem, os jornais calam, as paredes falam».
Grafitti de Barcelona, Junho de 2001.
1.
Génova abriu caminho para a clarificação das lutas futuras contra o que se convencionou chamar de lutas anti-globalização. O capitalismo sempre foi internacional assumindo, cada vez mais, desde os anos setenta a sua verdadeira face. Cada vez mais letal, recorre à morte programada para expandir o que o levou a ser criado. A rapina dos recursos do planeta, o trabalho robotizado para milhões de seres humanos, a escravatura sem limites para biliões de homens e mulheres que vivem na periferia do seu centro. Alargou os seus tentáculos a áreas que, por pudor ou incapacidades subjectivas, nunca antes tinha tocado. Hoje, não se trata de combater a barbárie tão cara aos intelectuais dos anos sessenta mas, sim, a morte dos anos dois mil.
2.
O género humano corre um perigo iminente. Não se respira, não se come, não se vive. A dicotomia entre países pobres e ricos não tem sentido se os objectivos forem a integração molecular capitalista. Cair na imbecilidade de «dar» aos países pobres o que os ricos têm a mais é defender o espectáculo das trocas de mercadorias abandonadas em favor da morte programada pelos media mundiais dessas mesmas áreas de pirataria e de saque. Milhões de endividados e sobreviventes do Norte a quem o capitalismo fez acreditar serem ricos apoiam caridosamente a sorte aleatória das massas que ainda não o conhecem directamente.
3.
Desde Porto Alegre que vem sendo vendida a ideia de que existem globalizações «boas» e « más» (1). Reside aqui o vértice de toda a acção em torno das situações de manifestações programadas e integradas rapidamente por agentes políticos do estado. Em Portugal, os teóricos das esquerdas parlamentares não se cansam de o admitir. Se, desde Seattle, o silêncio mostrou a incapacidade evidente de entenderem o que quer que seja principalmente na radicalidade da destruição simbólica, a partir de Génova desdobraram-se em declarações que pretendem mostrar as «boas» causas das «boas» globalizações (2). Preferem, assim, numa conjuntura que se perfila claramente anti-capitalista, não tocar na ideia do mercado tornado espectacular. O valor de troca das mercadorias não é posto em causa, em detrimento do valor de uso das trocas produtivas. Preferem, na sua imbecilidade já histórica, lutarem por «um mundo melhor»! A miséria da filosofia no seu esplendor.
4.
A famosa expressão «direitos de cidadania» que abriu a Cimeira de Porto Alegre não é mais que um logro perigoso para quem acredita que o capitalismo pode ser autogerido em assembleias municipais ou por voto electrónico. Quando o patrão exige novidade o escravo honesto proclama, de imediato, a sua própria modernidade (3). Entretanto, os partidos de Porto Alegre começaram a limpeza da cidade multiplicando as agressões e ataques a alternativos, punks e okupas.
5.
Génova permitiu ver até que ponto a traição das esquerdas parlamentares chegou. A divisão entre pacifistas e violentos faz parte do jogo da polícia e do estado. Isolando uns, gradualiza-se e selecciona-se a vítima seguinte. Os militantes do PCP, presentes nas esplanadas de Génova, chegaram ao ponto de denunciar a falta de eficácia da polícia italiana contra as «provocações anarquistas» (4) e isto já depois de ter sido assassinado um manifestante. Já o Bloco de Esquerda fala na necessidade, «agora, mais que nunca» (?) de mostrarem e sublinharem perante os media que os ilumina o seu intrínseco pacifismo (5). Declarações já feitas depois do ataque ao centro do Indymedia. A miséria da praxis no seu esplendor.
6.
Juntam-se, portanto, aos editorialistas de estado que são comprados para exprimirem as suas opiniões, evidentemente livres. Corta-se na Net, censura-se a imprensa alternativa, acciona-se o Echleton, alugam-se dirigentes da esquerda e da direita para esclarecedores «debates» que não dizem coisa alguma (6). Transmitem o que lhes dizem os donos sem face. Para os mais incrédulos, recordem-se do atentado de Bolonha, a prisão de Negri ou o Plano Norte no Euskadi e o comprovado papel dos media conjugado com as secretas militares e perceberão com mais clareza ao ataques alarves contra alguns dos manifestantes. Mesmo aos mais pacifistas. A suspensão dos acordos de Shengen pelo fascista Berlusconi a fim de confinar os presos em campos de concentração e em estádios, mereceram destas meretrizes, umas poucas linhas, mas nem por isso de indignação.
7.
A violência auto-defensiva já vem muito antes de Seattle, Praga, Gotemburgo ou Barcelona. A insurreição de Los Angeles, o movimento zapatista e os 1º de Maio alternativos de Londres e Amesterdão mostraram o simbolismo da destruição dos fétiches capitalistas. A destruição existe porque não há mais nada a dizer. Principalmente porque a arte do argumento e do debate, tão cara aos salões burgueses modernos, se esgotou. Agora falam as armas e os corpos e o futuro dirá quais as reais dimensões dos Jogos de Guerra e das situações tornadas irreversíveis. As futuras acções de combate só podem ter sentido na destruição de um mundo que já não o é, porque destituído de toda a sua dimensão humana e ecológica. Não havendo nada a perder só nos resta expressarmo-nos com o hedonismo de uma vida realmente vivida e com a criação de jogos reais. Da deriva criadora de situações extraordinárias.
Notas
1) O mais notável e mediático vendedor desta farsa é Boaventura Sousa Santos que, em várias entrevistas chega mesmo a contrapor à expressão «Povo de Seattle» carregada, para ele, de demasiada radicalidade a de «Povo de Porto Alegre».
2) Neste mesmo saco, e sem quaisquer pruridos, entram Miguel Portas, Alexandre Melo, Vasco Graça Moura, Mário Soares e o inesquecível lambe-botas J. Manuel Fernandes, director do Público, com o seu já célebre «cheiram mal!» em referência aos manifestantes de Génova!
3) Cit. de Guy Debord.
4) Jornal de Notícias de 22/07/01 - «Ângelo Alves do CC do PCP(...) sustentou que, se quisesse, a polícia poderia ter controlado alguns grupos deixando os activistas pacíficos manifestarem-se livremente» e, mais à frente, queixa-se de que «houve mesmo militantes do PCP e da JCP que se sentiram mal porque o ar estava irrespirável»!!!
5) Jornal de Notícias de 22/07/01 - Jorge Costa, assessor de imprensa do BE, para além de afirmar que «agora, mais que nunca, o BE deve mostrar o seu pacifismo» presenciou algumas cargas policiais que obrigaram os alucinados militantes do BE a uma «corrida»! Luís Branco, do PSR, secundou-o em entrevista às TV's.
Diário de Notícias de 26/07/01 - Miguel Portas: «Em Génova morreu um formato - o do espectáculo do poder, isolaram-se os hooligans da contestação (sic) e afirmou-se uma cultura de inconformismo. Óptimo.» Berlusconi não diria melhor!
6) Diário de Notícias de 21/07/01 - Pierre Bourdieu, um sociólogo inútil e conhecido pelas suas posições anti-televisão (escreveu um livro intitulado« Sobre a Televisão») e recusando sistematicamente a sua presença nas televisões para debates, visto serem inconsequentes, desta vez fez umas queixinhas insuspeitas. Nesta entrevista afirmou: «Estou pessimista. Os protestos atraem a curiosidade de todos. E por isso fracassa qualquer tentativa de análise. A opinião pública só gosta de anarquistas, dos hooligans, dos extremistas de esquerda.» Ninguém liga ao homem?
27/07/2001